Menina

Mal o sinal tocou anunciando o fim das aulas e Helena já estava de pé, mochila nas costas, pronta para sair da sala. A professora desejava um bom fim de semana naquele seu jeito lento de falar, o que só aumentava a angústia da menina. Morta de pressa, os pés pisavam nervosos no mesmo lugar, já adivinhando a corrida até em casa. Vão com Deus, terminou de dizer a professora e Helena já estava na porta. Seguiu ligeira pelos corredores da escola, desviando e trombando com outros alunos, desequilibrando-se mas não caindo. Cuidado, menina, não corre assim, gritou alguém, talvez a diretora. Tarde demais. Helena já estava no portão e de lá ganhou a rua. Pés velozes, a saia azul, cheia de pregas, roçava cócegas em seus joelhos, o tênis, também azul, rangia pisando pedras e folhas e gravetos nas gramas do caminho. A mochila, como casco de uma tartaruga desajeitada, balançava de um lado para o outro nas costas da menina. Corre no asfalto e na calçada, nas gramas dos quintais e no mato um pouco alto dos canteiros da cidade, o vento no rosto e os cabelos pretos e finos como seda oscilando suavemente.

A menina corria e ria, exibindo os dentes brancos em um rosto moreno cor de jambo. Quem a via passar veloz, sem parecer ver nada além do próximo passo, não conseguia deixar de também sorrir. Chulé, o cachorro de rua que passava o dia em frente à padaria, levantou ligeiro as orelhas quando a corrida de Helena ainda era passo distante. Quando a menina se aproximou, o cachorro já estava de pé, rabo e orelhas erguidos, aguardando o instante em que ela passaria por ali. E não deu outra, Helena passou e Chulé foi atrás, com facilidade acompanhado o passo rápido da menina. Por todo o caminho os cachorros erguiam a cabeça, cheios de curiosidade, e seguiam o cortejo que aumentava cada vez mais. O pensamento de todos devia ser “se está todo mundo atrás da menina é porque tem comida no fim dessa correria”, e corriam junto. Helena na frente, Chulé logo atrás, um pouco depois vinha uma vira-latas branca, bem pequena, as pernas curtas quase um borrão, tão ligeiro mexia as patas. Helena passou espremida pelo portão de casa, deixando que batesse com estrondo às suas costas. Se o pai ouvisse daria bronca. Mas isso não preocupou a menina. O pai nunca batia, só dava bronca com jeito de quem não queria dar bronca e logo botava a menina no colo e começava uma história sem fim, como a aula de matemática, só que mais divertida.

Os cachorros esperaram um pouco em frente ao portão (comida), tentando farejar (comida) alguma coisa. Como nada aconteceu (comida) começaram a se dispersar, um ou outro saindo sozinho em busca de seu lugar na rua, outros indo juntos, alguns quietos e outros agitados tentando chamar um companheiro para alguma brincadeira de cachorro que só os cachorros entendiam e gostavam de fazer. Foi então que ouviram o grito agudo e desesperado de Helena e se quedaram atentos, quietos, congelados no mesmo lugar, enquanto o eco do grito zunia como um sino gigante que soltasse sua badalada rompendo o véu de silêncio que cobria a pequena cidade. Todos voltaram ligeiros para defronte o portão, orelhas em riste, rabos alongados. Outro grito e então o silêncio.

Helena havia passado pela porta da casa como passara pelo portão, ligeira e deixando que se fechasse com estrondo às suas costas. No mesmo passo rápido tirou a mochila e a jogou sobre o sofá, onde quicou desajeitada e caiu no chão. A menina nem viu. Já estava no corredor da cozinha, onde a mãe cortava coisas para o almoço de dali a pouco. Também batendo atrás de si a porta da cozinha que dava para os fundos do quintal, Helena se viu parada, um ofegar suave dançando em sua respiração, os olhos ligeiros procurando. Era aqui, pensou a menina, tenho certeza. E foi então que gritou. A mãe veio correndo e parou antes mesmo de cruzar o portal. A menina se virou e gritou novamente. E desceu ao chão sem se importar com pedras e gravetos contra seus joelhos ossudos, mãos no rosto, chorando um choro miúdo e dolorido. A mãe se voltou para dentro da cozinha e logo depois se postou no mesmo lugar, corpo inclinado apoiado no batente da porta. A menina não viu nada disso, entretida com seu próprio sofrimento. “Deixa de choro e pega isso, menina”. Helena levantou devagar os olhos vermelhos, as lágrimas embaçando sua visão. Piscou repetidas vezes até conseguir enxergar o que sua mãe segurava na mão esticada em sua direção. O choro foi dando lugar a um riso de felicidade que logo se tornou uma gargalhada e lavou tristeza e lágrimas de seu rosto bonito de menina. “Teu irmão pegou mas eu tomei dele. Ele não gostou nada, mas todo mundo sabe que você já vinha namorando ela tem tempos. Pega, anda”. E Helena pegou com uma lentidão e um respeito excessivos. Era jovem demais para entender o significado do seu gesto. A palavra “ritual” só muito mais tarde passaria a fazer parte do seu vocabulário, mas a força viva de seu significado estava inteira no gesto da menina, em sua lentidão e olhar de admiração. Com cuidado tirou a manga da mão da mãe e a segurou entre suas mãos. Foi para a cozinha, passando pela mãe como se nem lhe notasse a presença, olhar fixo na fruta meio amarelada e meio esverdeada.

De vez, era como chamavam frutas assim ali na pequena cidade. “Não sei que desespero é esse pra comer a primeira manga, menina. Daqui a pouco esse pé vai estar carregado e vai ter manga apodrecendo no chão”. Mas Helena não ouviu a mãe. Com a respiração suspensa levou a fruta à boca e deu a primeira mordida, que rasgou casca e polpa. Um pouco do sumo escorreu pelo canto de seus lábios. Helena estava de olhos fechados e sorria.

A primeira manga de todo ano é sempre a manga mais gostosa que existe.